Vida, o 14º LP de Chico Buarque de Hollanda em 16 anos de carreira, pode dar a impressão de velho. E também de ter sido elaborado e gravado apressada e desleixadamente.
Velho: afinal, de suas 12 músicas, mais da metade já havia sido gravada antes, em outros discos. Sete, para ser exato. “Mar e lua” está no LP de Simone de 1980. “Bastidores”, que Chico fez para sua irmã Cristina gravar no primeiro disco dela para a Ariola, foi também gravada por Cauby Peixoto no LP Cauby!, Cauby! – e virou sucesso. “Fantasia” esteve no show e no LP do MPB-4 de 1979, Bons Tempos, Hein? “De todas as maneiras” tocou em todas as rádios, na voz de Maria Bethânia. “Morena de Angola” foi a música mais tocada, o carro-chefe do último LP de Clara Nunes, Brasil Mestiço. “Bye, bye, Brasil” foi gravada em compacto duplo pelo próprio Chico. E, finalmente, “Não sonho mais” está no LP de 1979 de Elba Ramalho, Ave de Prata.
Apressado e desleixado: afinal, mesmo algumas das cinco músicas inéditas podem soar, na primeira audição, como não muito bem elaboradas, não muito amadurecidas. E podem dar aquela impressão de que os versos sempre brilhantes do poeta Chico Buarque estão um tanto soltos dentro de uma moldura melódica simples demais, despojada demais, do músico Chico Buarque. Como se Chico tivesse as letras – e as encaixasse na primeira melodia que lhe ocorresse, sem muito burilamento, sem muita lapidação.
Um disco feito no meio de uma briga com a gravadora
Pode ter essa impressão. E haveria até mesmo uma justificativa nítida para isso: Vida, como se sabe, foi um disco gravado meio por obrigação, para cumprir um contrato que está terminando. Algo como um Sócrates entrando para jogar no domingo sabendo que na segunda-feira assina contrato com outro time. E o contrato com o outro time, Chico já havia assinado no início de 1980 – um milionário contrato com a gravadora alemã Ariola (falou-se em 37, em 40 milhões de cruzeiros só de “luvas”, e mais do que os 10% geralmente pagos ao artista pelo preço de cada disco; oficialmente, nem Chico nem a Ariola divulgaram cifras).
Restava, porém, pelo contrato assinado com a então Companhika Brasileira de Discos em 1969 (hoje PolyGram), a obrigação de fazer mais um disco. E que teria que sair logo, ainda a tempo de pegar a época do Natal, que é quando mais se vendem discos; e também porque o contrato antigo vencia no dia 8 de janeiro de 1981. A obrigação, é óbvio, deixou Chico aborrecido, mal-humorado: ele teria ameaçado inclusive jamais voltar a gravar, se as duas gravadoras não acertassem as pendências – aparentemente quando os diretores da PolyGram disseram que ele teria que gravar ali dois LPs, e não apenas um.
Acabou, é claro, entrando no estúdio da Barra da Tijuca, gravando, soltando a voz que ele aprendeu a soltar a partir do show que fez com Caetano Veloso, na Bahia, no final de 1972. E – inclusive por isso – o resultado final do trabalho é, depois de passadas as primeiras impressões, extremamente belo e rico.
Músicas “velhas”, já conhecidas? Na verdade isso não importa. São músicas de Chico Buarque de Hollanda – e interpretadas por um cantor que a cada disco está melhor, a voz bem distante da timidez dos primeiros trabalhos, solta, forte, emocionada, capaz de expressar bem todas as sutilezas dos versos inteligentes, mordazes, alegres, irônicos, esperançosos, amargos. “De todas as maneiras” está, sem qualquer dúvida, melhor do que na voz de Maria Bethânia. “Morena de Angola” tem o mesmo balanço, o mesmo dengo, a mesma malícia, o mesmo som repetido dos xises imitando o chocalho que na bela gravação de Clara Nunes – sem o horrendo “ui, ui, ui” que ela deixa escapar às vezes entre uma estrofe e outra.
“Bastidores” está, no mínimo, tão amargo e apaixonado quanto na voz de Cauby – mas com a adição de uma dose certa de ironia, de um rir-se da dor da mulher que canta: “Cantei, cantei, jamais cantei tão lindo assim / E os homens lá pedindo bis / Bêbados e febris / A se rasgar por mim / Chorei, chorei / Até ficar com dó de mim”. O amor urgente e proibido das duas mulheres em “Mar e lua” está pelo menos tão forte e sensível quanto na voz de Simone. E etc, etc.
Uma pérola, uma das mais belas canções de amor
As cinco músicas inéditas – passada a primeira impressão de afoiteza – certamente ficarão na cabeça de quem as ouvir com atenção. E estão entre elas, seguramente, duas obras-primas, que com certeza podem figurar junto a outras músicas definitivas de Chico: “Qualquer canção” e “Eu te amo”, esta com música de Tom Jobim. “Qualquer canção” é uma declaração de amor à música e de necessidade da música: “Qualquer canção de dor / Não basta um sofredor / Nem cerze um coração / Rasgado. / Porém inda é melhor / Sofrer em dó menor / Do que você sofrer / calado”.
E “Eu te amo”, que Chico e Telma Costa cantam acompanhados pelo piano e pelo arranjo de Tom, é uma das mais belas canções de amor que a música brasileira já produziu nos últimos anos: “Ah, se já perdemos a noção da hora / Se juntos já jogamos tudo fora / Me conta agora como hei de partir. / Se nós, nas travessuras das noites eternas / Já confundimos tanto as nossas pernas / Diz com que pernas eu devo seguir. / Como, se na desordem do armário embutido, / Meu paletó enlaça o teu vestido / E o meu sapato ainda pisa no teu”.
As outras inéditas são “Deixe a menina”, um samba irônico, bem-humorado e, como muito do que Chico tem feito ultimamente, feminista; “Já passou”, que fala sobre a dor da separação, em meio às eternas brincadeiras de Chico com o som das palavras (“Na Barra, na farra, / No Forró Forrado…”); e, finalmente, “Vida”, uma espécie de manifesto, de declaração de intenções, deste poeta que chega em 1981 aos 37 anos de idade, já sem a obrigação de ser o porta-voz da resistência à censura, ao obscurantismo, à ditadura: “Arranca, vida, estufa, veia, / E pulsa, pulsa, pulsa, / Pulsa, pulsa mais. / Mais, quero mais, / Nem que todos os barcos / Recolham ao cais. / Que os faróis da costeira / Me lancem sinais. / Arranca, vida, / Estufa, veia, / Me leva, leva longe, / Longe, leva mais”.
Ou seja: Vida, o 14º LP de um dos nossos quatro ou cinco principais compositores, de nosso mais fértil, brilhante e completo letrista, é um disco imprescindível para qualquer pessoa que deseje ter o registro do que de mais importante existe na música popular brasileira.
A historinha por trás do texto
Esse texto, publicado no dia 22 de janeiro de 1981 no Jornal da Tarde, foi minha primeira “crítica” de disco. Boto aspas porque tenho horror da palavra e do conceito de “crítico”. Já estava meio velhinho para começar uma carreira – tinha 31 anos, quase dez de jornalismo; era, na época, sub-editor de Reportagem Geral do JT, um cargo bem estafante, que ocupava de sete a dez horas do dia, e o free-lancer sobre música era tarefa para as horas vagas, fora do horário de trabalho no jornal.
Já não me lembro direito se eu andei pedindo uma oportunidade para escrever sobre música. O JT já tinha, é claro, vários e bons críticos de música. De fato não me lembro se fiz lobby, se pedi, pleiteei; lembro é que o editor de Variedades, nessa época, era Sandro Vaia, que já havia sido meu editor durante um bom tempo, éramos amigos, e ele me deu a oportunidade. E a partir daí virei “crítico” de discos de MPB, de janeiro de 1981 até julho de 1984, quando um grupo chefiado por Fernando Mitre, e que incluía Sandro Vaia, Anélio Barreto, Ari Schneider, Valdir Sanches e, entre outros, eu mesmo, saiu do Jornal da Tarde para criar a Afinal, uma revista semanal de informações.
Na Afinal, o número de horas na redação era ainda maior que no JT. Não sobrava tempo para continuar com a carreira de “crítico”, mesmo que eu quisesse. Ainda bem.
Como implico com a palavra “crítica”, este site é meu e faço nele o que bem entender, vou usar “Resenha” para a tag que reunirá meus textos sobre discos.
Ah, excelente sua primeira “crítica” de disco. E começou com o pé direito, hein?! Dessas até então inéditas músicas, eu adoro “Eu te amo”, “Vida” e “Deixe a menina”; essa última, agora que arrisco uns passinhos na dança de salão, cof, cof, dá um ótimo samba de gafieira.
Eu não acho que o Chico canta bem… acho a voz dele pequena e muito anasalada. Mas mesmo assim, acho que ninguém canta as músicas dele melhor que ele!
Claro que tive que ir correndo no tubo vê-lo cantar algumas dessas músicas, e sorrir, e me arrepiar, e suspirar … rsrs.
Pena sua carreira de não-crítico de músicas ter durado pouco. Em compensação temos um ótimo não-crítico de cinema :D.